"Eu a
verdade vos falo... e a prosopopeia continua. Pensem na coisa inominável que,
por poder pronunciar essas palavras, atingisse o ser da linguagem, para
ouvi-las tal como devem ser pronunciadas, no horror", (Lacan, 1998 [1966],
p. 881).
Como explicar o
golpe militar sob a perspectiva da psicanálise? Em sua vasta literatura, a
teoria psicanalítica pode nos ajudar a compreender a motivação e a propagação
de uma ideologia que estão enraizados nos porões do inconsciente coletivo de
toda a nação.
Até
hoje encontramos,num contexto político de feroz ditadura, instituições
psicanalíticas onde predomina a censura, o terror nos mais variados espaços, além
da valorização pessoal em detrimento do público. Esquecem que a clínica tem a
ver com o bem estar das pessoas e que a psicanálise é patrimônio da humanidade.
Inspirado
no entusiasmo do psiquiatra e, mais tarde, "poeta da psicanálise",
Hélio Pellegrino, que concebia seu ofício como um instrumento de libertação,
mas não se limitou a exorcizar os fantasmas que rondam os divãs: combateu
igualmente os vícios e monstruosidades que, aos poucos, se vão grudando no casco
da instituição psicanalítica e também fora da "carne", como no golpe
de 64, a reflexão deve começar internamente, tanto no indivíduo quanto no conservadorismo enraizado em verdadeiros "cartéis" (sem ligação alguma com o campo lacaniano) até atingir seu objetivo externo, o das reflexões sobre o ato.
O medo do que
não se conhece, as falsas propagandas de "ameaça comunista"
convertida em programas sociais que até hoje nunca foram implantados fez com
que setores conservadores apoiassem a derrubada da democracia no país há exatos
50 anos. Tudo por conta de um delírio de poder.
Freud (2005
[1913]), no livro Totem e tabu, nos diz que a fantasia se torna uma estratégia
do neurótico para fugir da realidade de insatisfação, construindo um cenário
que garante ao sujeito uma sensação de poder. Por isso, o sujeito “cultua” uma espécie de
onipotência do pensamento, que alimenta crenças supersticiosas carregadas de
desejos reprimidos.
Estes indivíduos
passam a introduzir um delírio na realidade para evitar o sofrimento, pois
buscam certezas de felicidade que os protejam e os guardem em situações de
prazer.
Por isso, surgem
os déspotas e suas doutrinas totalizantes, prometendo o compartilhamento de uma
"terra sem males", e para isso exigem a eliminação de todos aqueles
que são capazes de questionar o conteúdo do delírio. Assim foi o nazismo contra
os judeus e o militarismo no Brasil contra o militante político.
O ato para que
essa proposta não fracassasse culminou com a justificativa de morte e da
tortura impregnada com sangue na ação militar no decorrer dos anos de chumbo.
Até hoje
amargamos os resquícios da ditadura no Brasil. As políticas públicas propostas
pelo presidente deposto, João Goulart, em 1964, como reforma agrária,
educacional, urbana, eleitoral e diminuição do repasse dos lucros para empresas
estrangeiras, dentre outras, ainda espreitam nos conchavos do Congresso
Nacional.
Hoje vivemos em
um outro tipo de ditadura, a da burocracia. Com isso, até a prática
psicanalítica, que sempre foi e será, como um dado em si, um exercício que tem
existência própria e que é, portanto, natural e para todos, fica comprometida.Sabotá-la
ou tentar prejudicar quem a propaga nada mais é do que a manifestação de um ato
neurótico, ditatorial e antiético.
Neste caso vale
o ditado "peixe morre pela boca", no outro caso, o da burocracia das
instituições democráticas, talvez ir para rua, gritar por socorro pode ser uma
saída, mas acredito na revolução simbólica como principal arma contra a falta
de estrutura social, sociedades individuais que se dizem públicas e o caos em
que a democracia tenta se consolidar.
No trecho do
artigo "Das revoluções simbólicas", o psicoterapeuta Valdemar J. Rodrigues,
diz que uma verdadeira revolução, uma revolução simbólica, é um exercício de
psicanálise individual de longo alcance histórico que leva um povo a examinar a
sua consciência enquanto povo, o seu passado individual enquanto cidadão, e a
admitir a verdade da sua história, as suas vaidades e crimes, incluindo os de
ingratidão e esquecimento, e um ou outro (sempre escasso) motivo de orgulho
coletivo.
Aprendemos com
os erros. Alguns até nos fazem crescer, mas, para lidar com as consequencias, é
necessário revirar o passado do avesso para vislumbrarmos um futuro plausível
para todos os cidadãos que primam pela liberdade, igualdade e condições dignas
de trabalho.