segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Psicanálise no campo das dependências



“O que existe para a psicanálise é o sujeito, e é este que é colocado em evidência e não a substância psicoativa”.

Através da política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas deu-se ao dependente químico o status de cidadão. O primeiro passo para uma abordagem humana e sem preconceitos está na garantia dos seus direitos básicos e fundamentais para a vida, como saúde, educação e assistência social. Antes, o usuário, sempre visto como um criminoso “sem vergonha”, sempre esteve privado pelas medidas coercitivas e moralistas de tratamento.

Ao entrar neste ambiente para fundamentar teoricamente a prática psicanalítica nas instituições governamentais ou não e o cuidado com os sujeitos usuários de substâncias, observamos que a psicoterapia, pela sua ética, que é a do sujeito e do seu desejo, é incompatível com a política impositiva apoiada em um sistema de regras e punições.

A psicanálise torna-se viável para o tratamento de toxicômanos se voltarmos nossos estudos ao Lacan nomeou como o “Discurso do Mestre”, um dos nomes do discurso do inconsciente, ou seja, dos sujeitos afetados por uma divisão. Enquanto os outros discursos estão voltados para o fenômeno do uso da droga e seu controle, a psicanálise é um dispositivo avesso a este discurso e tem como direção de tratamento fazer falar este sujeito em sua singularidade radical, ou seja, dar lugar ao seu sintoma. Na experiência analítica é possível que se pergunte menos pela toxicomania do que pela droga como sintoma e sua relação com o sujeito do desejo, o dependente.

Segundo o trecho do artigo: “Reflexões a respeito da psicanálise no campo das dependências químicas”, de César de Goes, cada sujeito possui uma relação peculiar com as drogas, e é ele que faz a sua droga e pode voltar a sempre procurá-la como recurso, e isso tem a ver com a sua particularidade, portanto, uma dependência não se deve exclusivamente ao poder viciante de uma droga. Dessa forma para a psicanálise o toxicômano é apenas um signo que identifica o paciente que faz uso compulsivo de uma determinada substância tóxica. O que existe para a psicanálise é o sujeito, e é este que é colocado em evidência e não a substância psicoativa.

Dos programas governamentais destinados ao tratamento mental e toxicômano, o CAPS é o que mais está em consonância com a ética psicanalítica: um modo de escutar e falar ao outro e do outro na sua alteridade (do inconsciente) compreendida como uma abertura, uma resposta. O outro como espelho.

No CAPS/AD, as ações partem do pressuposto que existe um sujeito com voz, capaz de dizer de si mesmo. Não prevalece a lógica da cura, mas é cedido ao sujeito um lugar de existência subjetiva, uma condição permanente de escuta e questionamento acerca de como esse outro se torna ator principal na construção do seu projeto de tratamento.

Lá, a equipe multiprofissional é composta pela coordenação, enfermeiros, psicólogos, terapeuta ocupacional, assistente social, profissionais de nível médio, psiquiatra, clínico e auxiliar de serviços gerais. A descontinuidade é uma característica prevalecente no tratamento. São poucos os pacientes que permanecem por longo tempo na unidade. Diversos são os fatores provocam essa característica. A fragilidade do vínculo com a instituição possivelmente tenha uma influência direta da relação que o sujeito estabelece com o seu objeto (droga), ou seja, com o gozo.

Num primeiro contato, parece que a escuta é ineficiente. Porém, dentro da rotina de desencontros, descontinuidade e um tratamento fragmentado, existem muitas falas que demandam a escuta e o cuidado para o campo da análise. Todos que compõem a equipe escutam. Até mesmo aqueles que se encarregam de tarefas operacionais ou administrativas. O que mudaria é: um psicanalista sabe fazer com aquilo que escuta e, se especializado, fará o necessário para um encaminhamento mais eficaz.

O dependente, com a ajuda da psicanálise, teria que chegar a entender que o que lhe falta não é a droga, mas algo que carece a todo o ser humano. Desde o nascimento somos faltantes de alguma coisa. E essa necessidade de busca, mesmo inconsciente, é que nos faz pensarmos, conversarmos, criarmos e aprendermos a lidar com a dor de viver.

Fonte: “Reflexões a respeito da psicanálise no campo das dependências químicas”, de César de Goes.