"Toda a gente
tem o seu lado obscuro que - desde que tudo corra bem - é preferível não
conhecer", C. G. Jung.
Que o Estado do Espírito Santo vive um "surto
epidêmico" de crack, como em todo o Brasil, disso até quem não quer ver ao
menos sabe. Só que o erro das análises nas pesquisas costumeiras, em relação à
dependência química, está, justamente, em alguns fatores: na nomenclatura, interpretação
e divulgação.
O crack tem sim um poder devastador devido seu alto
potencial de dependência, mas enganam-se os que pensam que é apenas uma
"epidemia", ou ainda, que se trata da droga mais difícil de ser
tratada pelos usuários. A diferença básica é que epidemia refere-se à elevação
brusca, temporária e significantemente acima do esperado da incidência de uma
determinada doença, já o surto é uma ocorrência epidêmica na qual os casos
estão relacionados entre si . O fato é que o país tem poucas respostas. Embora
seja reconhecida como droga violenta e destrutiva, o vício não é um beco sem
saída. Vários casos evidenciam que é possível recuperar-se. Com surto ou não.
Mas não há passe de mágica.
Há anos, o Sistema Único de Saúde desenvolve tratamentos
baseados em atenção multidisciplinar por meio dos Centros de Atendimento
Psicossocial para Álcool e Drogas (Caps-AD), com apoio de hospitais para
internação em casos de crise, e estruturas da assistência social. O problema é
o déficit crônico de recursos no SUS, além do fato de que os princípios que
devem guiar esse atendimento nem sempre são seguidos.
Conforme a literatura e estudos sobre dependência
química, este contexto caberia ao álcool. Muitos se esquecem que o alcoolismo
ainda é o maior problema de saúde em se tratando de drogas no mundo. Embora o
consumo moderado possa ter efeitos positivos, seu abuso é muito nocivo, já que
eleva a pressão sanguínea, aumenta o nível de gorduras nocivas no sangue e
danifica o tecido cerebral.
A Pesquisa Global de Drogas (PGD) de 2014 indica que o
álcool foi a droga mais usada em todo o globo, à frente do tabaco e da
cannabis. O álcool também foi a droga mais responsável pelo envio de pessoas a
prontos-socorros, e o vício que mais preocupou amigos e parentes das vítimas. A
PGD é a maior pesquisa mundial sobre drogas, perguntando aos usuários sobre seu
uso de substâncias viciantes.
Uma constante interessante do estudo foram as informações
incorretas sobre o álcool entre aqueles que mais bebem. A pesquisa mostrou que,
de todos aqueles podem ser classificados como altamente dependentes de álcool,
segundo os padrões da Organização Mundial de Saúde, menos de 60% reconhecem que
seu comportamento os coloca sob alto risco de problemas.
Se o crack tem feito cada dia mais reféns, os dependentes
de álcool vivem numa espécie de Síndrome de Estocolmo (nome dado a um estado
psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de
intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade
perante o seu agressor).
O que insisto em dizer é que ao pensarmos em políticas
para redução de danos aos usuários do crack esquecemos de trabalhar outras
substâncias psicoativas. Elas são tão ou mais perigosas que os cachimbos e estão
enraizadas fortemente em nossa cultura.
Nenhuma droga, qualquer que seja, é mais branda ou menos
perigosa para o dependente químico. Mas, segundo levantamento realizado pela
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), demandado pela Secretaria Nacional de Políticas
sobre Drogas (Senad), existem cerca de 370 mil usuários regulares de crack e
similares no Brasil, sendo que aproximadamente 25 mil destes se encontram em
território capixaba.
Eu pergunto: há condições reais para o debate? Uma vez
que os mesmos intérpretes de pesquisas sobre drogas, no Brasil ou no Estado,
apenas retiram, para representar os gráficos, uma parcela pobre, sem
escolaridade, infratora e moradora de rua. O universo estatístico é
infinitamente maior do que isto. E é muito mais difícil tratar uma pessoa que
corre o risco, o tempo todo, e com menos de um real, sofrer uma recaída.
Segundo o antropólogo Maurício Fiore, integrante do
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip), formado por
pesquisadores da área de ciências humanas, o crack não é a substância
psicoativa que mais deveria ser tema de debate no Brasil, e sim o álcool. Mas,
como está muito relacionado a um contexto de pobreza extrema, marginalização e
ocupação de espaço público, a própria existência do seu consumidor é menos
suportável.
É certo que se têm aparecido dados sobre seu uso em
lugares onde a opinião pública nem imagina, mas, por enquanto, é preciso
precaução. O consumo de crack se disseminou pelo país e, ao que parece, teve um
aumento razoável nos últimos anos. Mas não se trata de epidemia, e sim do fato
de seu consumidor, por uma série de fatores, incomodar mais os olhos.
Infelizmente, para quem é doente (sofre a síndrome da
dependência química), uma dose de pinga é tão letal ou prejudicial quanto a
fumaça de uma "pedra". Talvez pior. Depende do que se entende por
"epidemia". O que se alastra por aí, na verdade, é a falta do que fazer
a respeito do assunto. Agora sim, temos uma epidemia perigosíssima: a da
ignorância e da indiferença. Afinal, todo mundo bebe!