segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Cultura nua



  

  
"Quando o português chegou debaixo duma bruta chuva vestiu o índio! Fosse uma manhã de sol o índio tinha despido o português."  - Oswald de Andrade (1890-1968), poeta e romancista brasileiro.

No trecho, o escritor modernista Oswald de Andrade mostra que não há cultura superior a outra, mas sim desnuda  preconceitos. Para isso, ele, com jogo de palavras, habilmente, desmistifica o etnocentrismo (um indivíduo etnocêntrico considera as normas e valores da sua própria cultura melhores do que as das outras culturas). Oswald de Andrade, ao contrário de outros autores, não se deixa vislumbrar e inferiorizar o que é exótico ou "selvagem" de acordo com a civilização. Para ele, tanto o europeu quanto o nativo estavam nas mesmas condições.                                              

O autor e poeta brasileiro tem na figura do índio um conceito que carrega consigo toda uma concepção de mundo, um tabu a ser transformado em totem:

ora, ao nosso indígena não falta sequer uma alta concepção de vida    para se opor às (...) as vigentes que o encontraram e o procuraram submeter. Tenho a impressão de que isso que os cristãos descobridores apontaram como o máximo de horror e o máximo de depravação, quero falar da antropofagia, não passava de um alto rito que trazia em si uma Weltanschauung, ou seja, uma concepção devida e do mundo (ANDRADE, 1970).

Para ajudar a afirmar a liberdade "atropofágica" cultural de Andrade, Laraia afirma que já foi o tempo em que se admitia sistemas culturais lógicos e sistemas culturais pré-lógicos.  "A coerência de um hábito cultural somente pode ser analisada a partir do sistema a que pertence".

Conforme LAPLANTINE (2003):

acaba o caráter privativo dessas sociedades sem escrita, sem tecnologia, sem economia, sem religião organizada, sem clero, sem  sacerdotes, sem polícia, sem leis, sem Estado - acrescentar-se-á -no  século XX sem Complexo de Édipo - não constitui uma desvantagem. O selvagem não é quem pensamos.

Outra questão sobre choques culturais seria quando "um sujeito que estava colocando flores no túmulo de um parente quando vê um chinês colocando um prato de arroz na lápide ao lado. Ele se vira para o chinês e pergunta: 

- Desculpe-me, mas o senhor acha mesmo que o seu defunto virá comer o arroz? 

E o chinês responde: 

- Sim, geralmente na mesma hora que o seu vem cheirar as flores!

A mesma lógica ou análise de Laraia se aplica nesta indagação. Não existem culturas superiores, mas diversas manifestações de cultura, de acordo com vários aspectos, biológicos, geográficos, dentre outras. Neste caso, em especial, uma mesma manifestação cultural, só que de forma diferente. O culto aos mortos. O ocidental coloca flores no túmulo enquanto o oriental arroz. A diferença é apenas - nesta manifestação cultural - geográfica. No aspecto filosófico e sentimental é o mesmo: trata-se de homenagem aos ancestrais de forma e atribuições diferenciadas.  

a nossa herança cultural, desenvolvida através de inúmeras gerações, sempre nos condicionou a reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade. (LARAIA, 2001).

Engraçado notar um aspecto psicanalítico na situação. Um choque cultural que pode acarretar em vários desdobramentos psicológicos. Então, vamos nos ater à situação ocidental:
Homens adoram presentear mulheres com flores, mas, se alguma rejeitá-las, talvez não será pelo fato do enamorado comprar o presente. Na maioria das vezes, as flores, representam algo traumático. Mas, não se preocupem, a grande maioria adora receber rosas. E essas flores - como o amor "plastificado" no ato de dar ao outro uma lembrança - não morrem!   

Referências:

ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago, in Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970

LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. 14º edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001.

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. Ed. Brasiliense. São Paulo. 2003.