Na íntegra,
entrevista, publicada dia 22 de outubro de 2014, no jornal O Globo, com a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco. Ela é a
principal convidada da “IX Jornada Bianual do Contemporâneo”, promovida pelo
Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade, nos dias 3 e 4, em Porto
Alegre. No dia 6, estará no Rio para falar sobre “A psicanálise na situação
contemporânea”, às 9h, no Instituto de Psicologia da Uerj. O Brasil, para ela,
é hoje o “país mais freudiano do mundo”.
Autora, que faz palestras no Brasil em outubro, critica
‘antifreudianismo’ e desmonta lendas sobre criador da psicanálise
A vida e a obra de Sigmund Freud (1856-1939), o criador
da psicanálise, foram objetos de uma enormidade de estudos. Mais uma biografia,
hoje, do célebre autor de “Interpretação dos sonhos” e “Totem e tabu”? Para a
historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, a escrita de seu “Sigmund
Freud — dans son temps et dans le nôtre” (Sigmund Freud — em seu tempo e no
nosso) foi uma “imposição”. Com acesso aos novos arquivos abertos pela
Biblioteca do Congresso de Washington, nos Estados Unidos, a autora francesa
mergulhou na vida e obra do biografado com a intenção de mostrar que Freud é um
produto de seu tempo e, ao mesmo tempo, revelar verdades sobre as “lendas
negras e douradas” edificadas sobre o personagem. O livro foi lançado este mês
na França, pela editora Seuil, e tem publicação prevista no Brasil para 2015,
pela Zahar.
Crítica severa de uma psicanálise a-histórica, Roudinesco
condena a percepção da obra de Freud isolada do contexto de sua época, estudada
como um corpus clínico à parte do mundo em que foi elaborada. Somado a isso os
repetidos ataques protagonizados nos últimos 30 anos pelos “antifreudianos
radicais”, hoje não se sabe mais quem é Freud, sustenta a autora em entrevista
ao GLOBO em sua casa, em Paris.
Desde a primeira biografia de Freud, de autoria de Fritz
Wittels, em 1924, passando pelos três volumes de “Vida e obra de Sigmund
Freud”, de Ernest Jones, publicados entre 1953 e 1957 (lançados no Brasil pela
Zahar), uma miríade de teses e ensaios foi produzida nos mais variados idiomas,
entre os quais o título de referência “Freud: uma vida para o nosso tempo”, de
Peter Gay, de 1988 (Companhia das Letras). O minucioso trabalho de 592 páginas
de Roudinesco é reivindicado como a primeira biografia francesa do personagem,
com uma nova abordagem e distanciamento de um Freud definido como um
“conservador rebelde” e criador de uma “revolução simbólica” em um movimento
que se perpetua.
Por que Freud e
este livro hoje?
A necessidade se fazia sentir ao longo de um certo tempo
de renovar a abordagem de Freud. Sou o primeiro autor francês a fazê-lo, e o
último de um longa série. E o primeiro a ir aos arquivos e utilizá-los de uma
outra forma. É verdade também que o fim de um ciclo de ondas sucessivas de ódio
a Freud, de lendas negativas, de livros negros, já faz 25 anos. Se foi muito
longe no antifreudianismo, e se chegou a um ponto em que a opinião pública já
estava farta de que se tratasse Freud de nazista, de incestuoso, de canalha.
Era preciso restabelecer um pouco de verdade. Eu me dediquei a isto. Os
psicanalistas nadam no anacronismo, na interpretação abusiva, porque para eles
o contexto histórico não existe. Quis mostrar bem que Freud nasceu num mundo no
qual não havia eletricidade, em que a promiscuidade de membros de uma mesma não
era a mesma de hoje. Quando ele conta sua vida cotidiana, seja na
“Interpretação dos sonhos” ou em outros escritos, é um dia a dia diferente de
hoje. Freud foi criado numa família grande, com muitos empregados, sem água
corrente. Ele vive nesta promiscuidade em que pode realmente elaborar a teoria
dos substitutos. Quando ele vê suas cinco irmãs, vê sua mãe ou seu pai. Há
modelos familiares que estão acabando no momento em que teoriza isto. Tive
sempre a preocupação de o imergi-lo em seu contexto histórico, e de mostrar que
ele e sua obra são um produto de seu tempo.
Na França, o país
mais freudiano do mundo, segundo a senhora, há uma rejeição analítica da
complexidade da história de Freud. Por quê?
Mais se é freudiano, menos se é histórico. Mas isto está
acabando. A França foi o país da renovação da doutrina e não o da herança
histórica. Gerações de psicanalistas se interessaram nos textos freudianos de
forma estrutural: o corpus sem sua história. Não é um acaso se não houve
biografia de Freud na França. Jones, qual seja a crítica que lhe possa ser
feita, tem a preocupação da história. O mundo anglófono foi muito mais atento
do que o francófono à questão de imergir Freud na história, mesmo se ainda
restam como interpretações psicanalíticas. A psicanálise sendo cada vez menos
forte na renovação teórica, a preocupação foi de historizar. E nos Estados
Unidos, as querelas entre historiadores são muito mais importantes do que as
disputas entre psicanalistas. Não é o caso na França. E também não é o caso no
Brasil e na Argentina.
O argentino Emilio
Rodrigué (1923-2008), primeiro biógrafo latino-americano de Freud, teve, na sua
opinião, a “audácia de inventar um personagem mais próximo de um personagem de
Gabriel García Márquez do que de um sábio originado da Velha Europa”. A senhora
diz que cada país criou seu próprio Freud. Quem é o Freud brasileiro?
O Brasil tem esta vantagem de ser aberto a tudo. Os
brasileiros são muito abertos à história da psicanálise e a todas as doutrinas,
há um sincretismo. É o que foi chamado de antropofagia, este movimento que
digere o que vem da Europa fazendo algo novo. Daí esta vivacidade. Embora a
França seja mais forte no plano doutrinal, hoje provavelmente o país mais
freudiano do mundo seja o Brasil. Porque no Brasil o ensino da psicanálise se
mantém nas universidades de Psicologia, mais do que na Argentina. Mesmo que a
implantação da psicanálise tenha sido feita pelos argentinos, que tiveram o
golpe de gênio de implantar o kleinismo, o freudismo e o lacanismo. Mas a
tradição universitária brasileira é muito forte. E o fato de que seja dividida
em cidades é muito importante. Não é a mesma coisa no Rio, em Porto Alegre… E
eles digeriram tudo que veio da Europa de forma antropofágica. Temos uma
abertura maior no Brasil a tudo. O defeito, evidentemente, é que não há escola
histórica, mas há uma tradição. Houve Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss, há
uma abertura. Os brasileiros são ecléticos, e abertos a novas abordagens,
enquanto na França os psicanalistas têm 25 anos de atraso em relação a sua
história, infelizmente. E o dogmatismo lacaniano e psicanálitico em geral teve
um papel nisso. Mas vamos chegar lá. Já o Freud brasileiro é eclético, é uma
mistura de kleinismo, de lacanismo, de invenção brasileira. E neste ponto,
Emilio Rodrigué colocou seu tempero. Ele faz variações em seu livro, é um
romance latino-americano, se autoriza interpretações extravagantes, ,mas gosto
disso, porque ao mesmo tempo há a seriedade do aparelho crítico.
A senhora muitas
vezes respondeu a consecutivas iniciativas dos chamados “antifreudianos
radicais”, como a tentativa de interdição de uma exposição sobre Freud em 1996,
processos na justiça por difamação ou obras como “Mentiras freudianas”, de
Jacques Bénesteau; “O livro negro da psicanálise — Viver, pensar e melhorar sem
Freud”, organizado por Catheryne Meyer, ou “O crepúsculo de um ídolo, a fábula
freudiana”, de Michel Onfray, com quem teve uma acirrada polêmica e que não
tardou em atacar este seu último livro sobre Freud. O “antifreudianismo” ainda
é forte?
Isto nunca acaba. Mas depois ter sido um movimento
majoritário, se torna agora minoritário. Assim como os psicanalistas tiveram
sua hora de glória majoritária, hoje são minoritários. Mas eles não vão
desaparecer. Michel Onfray respondeu que não precisava ler este livro para
saber o que havia nele. Quando se diz isso, é o fim de qualquer debate. Há anos
ele recusa qualquer debate comigo, e nós nos conhecemos muito bem. Ele delirou,
disse que eu o tratei de pedófilo. De qualquer forma, não é apenas em relação a
Freud que ele diz qualquer coisa. Fez o mesmo sobre a Bíblia, Albert Camus,
Sartre, Sade, e vai continuar. Mas num momento a verdade triunfa. Da mesma
forma que caiu a Nova Filosofia, todas estas besteiras que há 30 anos nos
envenenam. Foi uma corrente não universitária muito sedutora em seu início,
jovem, com personalidades brilhantes. Mas que tinham como maior defeito contar
qualquer coisa, como dizer que o goulag já existia em Marx e Engels. Isto é uma
contraverdade histórica. E de um certo modo a França está pagando hoje por
isto. Hoje, estamos na vingança dos historiadores e dos filósofos
universitários contra os filósofos midiáticos não universitários. Estamos no
fim da Nova Filosofia, do antifreudianismo radical. Vamos passar à herança
real.
A senhora define
Freud como um “conservador rebelde”. Por quê?
Sem dúvida é um conservador rebelde. Ele entrou em
rebelião contra os modos de pensar majoritários de sua época. Ele é um liberal
conservador, que induziu uma revolução do íntimo. É contemporâneo do
socialismo, do comunismo, do feminismo, de todos os movimentos de emancipação.
Mas sua característica é que retorne sempre ao Antigo, algo muito típico também
de Viena e da cultura alemã. Para fazer uma revolução do íntimo, vai buscar
modelos míticos na tragédia grega e não na modernidade literária, a qual,
aliás, ele não entende muito bem. Ele tem este aspecto politicamente
conservador, vota liberal, trabalha com os sociais-democratas em Viena, não
confunde jamais o comunismo e o nazismo, mas não acredita que uma revolução
social do tipo marxista vai dar certo. Ele é contemporâneo da Revolução Russa.
Não é a favor das convulsões republicanas francesas. Mas seu movimento
psicanalítico é aberto, com discípulos de todas as tendências, progressistas,
conservadores. Ele era pela emancipação das mulheres, e contra a supressão das
instituições. Há uma imagem muito justa de Freud: era favorável à morte do pai,
ao regicídio, mas a favor de que se recolocasse um rei no trono. Isto é
explicado em “Totem e Tabu”. Freud é regicida na condição de que reinstaure a
monarquia depois de ter sido abolida. Não é republicano no sentido francês. Ele
gosta muito de Paris, mas não é a favor de revoluções do tipo francês. O modelo
para ele é Londres, o modelo econômico liberal inglês, e a cultura do Sul, a
Itália e a Antiguidade romana.; e mais longe, a grega, e mais longe ainda, o
Egito. Freud é um homem da bacia mediterrânica em seus sonhos, algo muito
austríaco, entre o Norte e o Sul, e muito ligado ao modelo de monarquia
constitucional. E ele é judeu, o que tem um papel considerável. Não é a favor
do sionismo, à criação de um Estado judeu, prefere a diáspora, mas herdou algo
desta rebelião. Para época de Freud, o inimigo é a religião. Ele é pela
ciência. O que faz com que por vezes, em seu debate com o pastor Oskar Pfister
(1873-1956), possa se enganar, confunde religião e fé. Mas para esta geração de
homens sábios, originados do materialismo, o inimigo é o religioso. Ele tem
isto em comum com Marx. Por isso é um conservador bastante singular. Ele é pela
liberdade sexual, contra a pena de morte.
Um dos erros de
Freud, segundo a senhora, é o de acreditar na construção de uma ciência.
Não é uma ciência, no sentido das ciências da Natureza.
Ele sabia disto, por isso que abandonou o modelo fisiológico-neurológico. Mas
não soube inscrever a psicanálise como uma disciplina integral na universidade.
O que fez com que sempre tenha sido ensinada nos departamentos de Psicologia,
Antropologia, Sociologia, Literatura e Filosofia. Teria podido fazê-lo? Não
sei, talvez não. Talvez o destino da psicanálise seja o de não ser uma
disciplina à parte. Mas hoje estamos novamente em um retrocesso, na ideia de
que o corpo e o movimento são mais importantes do que a palavra. Mas isto não
vai durar. Estamos numa encruzilhada, se foi muito longe na explicação
estritamente química e orgânica do inconsciente. A psiquiatria biológica não
existe mais como psiquiatria, ela é química. Há uma contestação. Quando se
questiona a os resultados de Freud com seus pacientes, sua resposta é a de que
a técnica psicanalítica trata as neuroses, não as psicoses. Durante trinta anos
houve um reinado do “tudo químico”. Isto está acabando. Não por um retorno à
psicanálise, mas como explicação demasiado totalitária, e pela rejeição dos
pacientes. Freud elaborou uma clínica aplicada em seu início às neuroses. Mas
eram neuroses graves. Ele mudou, a partir de 1914 percebeu a incurabilidade.
Depois, o saber psicanalítico dominou toda a psiquiatria do século 20. Foi uma
boa coisa. Antes do aparecimento dos psicotrópicos, era melhor ir em clínicas
nas quais havia uma abordagem psicanalítica do que ser um simples sujeito de
sanatório. A partir de 1945, os antigos asilos esvaziaram, foi um enorme
progresso. E a ideia de combinar a cura pela palavra com medicamentos, para as
psicoses, é uma bela definição. Sabemos que para um melhor tratamento da
loucura são necessárias três abordagens, de meio ambiente, psíquica e medical.
O problema é que mas nossas sociedades de hoje, com economias orçamentárias
draconianas, não temos os meios de curar os loucos com os três meios. Então se
passou ao “tudo químico”, que funciona mais rápido, mas que é catastrófico. A
tripla abordagem se tornou impossível. Nas sociedades precarizadas como as
nossas, os doentes mentais e os prisioneiros são muito mal tratados.
No livro, a senhora
desconstrói “lendas” como as da autoanálise ou do complexo de Édipo freudianos.
Eu desfaço o complexo de Édipo. Freud não escreveu uma só
linha, exceto sobre o declínio do complexo de Édipo. Falou do complexo de Édipo
por tudo, mas não teorizou. A psicologia edipiana não se sustenta. O complexo
de Édipo como psicologia de família não funciona. O genial é fazer crer a cada
neurótico que ele é Hamlet ou Édipo em vez de um doente mental. É muito melhor
ser um herói de teatro do que um simples doente mental em um sanatório. E ele
não foi capaz de escrever sobre a metapsicologia. A autoanálise não existe, é
uma lenda forte e inventada. O próprio Freud disse que era a “sua autoanálise”,
mas não é uma autoanálise, e sim uma passagem pelo erro para se alcançar a
verdade. A correspondência com Wilhelm Fliess (1858-1928) não é uma
autoanálise, mas uma errância de sábios. Ele errou no irracional para conseguir
elaborar uma doutrina que sai da fisiologia. A “pulsão de morte”, um dos
momentos fortes de Freud, não começa em 1919, mas em 1914, quando ele se
pergunta, para introduzir o narcisismo, por que nos autodestruímos. Penso
também que Freud tinha a convicção de que o que acontecia na realidade social
já estava no psiquismo. Isto é apaixonante. E tinha a convicção de que o que
ele mesmo dizia era revelador do inconsciente, e apenas traduzia, e que a
realidade se passava como no inconsciente. Isto não é verdade, mas quanta
audácia!
A senhora aponta
como uma das grandes forças de Freud a criação de mitos.
Outra audácia sua foi a de fundar uma ciência fundada nos
mitos, na racionalidade do estudo dos mitos. Cada livro de Freud provocou
debates no mundo inteiro. Quando ele publica “Totem e tabu”, que vai na
contracorrente da antropologia moderna, o mundo acadêmico discute este ensaio
completamente fora de moda. Isto significa que ele contribui com algo. Quando
escreve seus três ensaios sobre a teoria sexual, em vez de fazer um tratado se
sexologia, o caso de todos seus contemporâneos, ele se ocupa da teoria sexual das
crianças. Para mostrar que o que se considerava como perversões não o era, e
que somos todos perversos.
O que é a
“revolução simbólica” de Freud?
A lenda é a de que Freud inventou tudo, de que não deve
nada a sua época. Não é verdade. Ele inventa algo da ordem que defini como
revolução simbólica, remodelando as representações de sua época. Nisso ele é
inovador. Quando se lê os psicólogos contemporâneos de Freud, que são válidos,
sua superioridade intelectual, literária e imaginativa é evidente. A fraqueza
de Freud foi a de não poder introduzir esta disciplina na universidade. E sua
força foi a de ter feito um movimento. Ele não cria uma seita, mas um movimento
político, revolucionário, platonista. Ele e seus discípulos têm consciência
desde o início de serem portadores de uma revolução simbólica. A prova é a de
que possuem a preocupação da memória e da história, contrariamente aos
psicanalistas. Tinham o pressentimento de que seu mundo iria desaparecer, o que
vai ocorrer primeiro com a Primeira Guerra Mundial, e uma segunda vez, com o
nazismo. Aprecio nos primeiros freudianos – que se disputam todo o tempo e que
admiram mas não idolatram Freud – este sentimento de que seu mundo vai perecer.
Daí vem a imigração, e o fato de que se deve levar a todos os países do mundo a
lembrança de Viena. O exílio de Freud, sua casa, suas coleções, é a ideia de
que já que tudo vai morrer com o nazismo, é preciso transportar a memória do
movimento. Arquivos, fotografias, tudo é transportado para Washington ou
Londres. É um gesto incrível. Freud não crer acreditar que o nazismo vai
engolir Viena. Ele sabe, mas não quer aceitar. Ele espera por Hitler, e face a
essa pulsão de morte, personalizada em Hitler, recua até o momento em que é
preciso partir.
Entre as ditas
“lendas fabricadas”, como senhora diz, estão suposições de Freud teria sofrido
abuso sexual na sua infãncia, vivido uma relação com sua cunhada, abusado ele
mesmo de sua sobrinha-neta ou em seu exílio em Londres abandonado suas irmãs,
depois deportadas e exterminadas pelos nazistas.
Eu não encontrei nada disso nos arquivos. O que não se
sabe é como foi a vida sexual de Freud antes de seu casamento. Ele teve
provavelmente a adolescência de um jovem de Viena. Não gostava de prostíbulos,
do adultério. As mulheres se casavam virgens. Não se sabe o que houve antes,
mas se sabe o que veio depois. Ele tinha a necessidade de ter mulheres em seu
entorno. Pratica a abstinência, não quer outro filho. Sua cunhada ocupa um
lugar muito particular. É uma segunda esposa não sexuada, ele mesmo o diz. Mas
é preciso ser completamente louco hoje para colar retrospectivamente o que é a
sexualidade atual sobre o que era naquela época. Não há verdades ocultas, mas
quis invalidar os falsos rumores. Houve pessoas que negaram a existência do câncer
de Freud, o que é fascinante. Ele também não recomendou a Gestapo. Desminto
tudo isso. Se construiu uma máquina de fantasias, sejam negras ou douradas,
sobre o personagem.
A senhora coloca
Freud no mesmo estatuto de Einstein, Darwin, Marx, Sartre, Simone de Beauvoir,
Hannah Arendt ou Michel Foucault: pensadores rebeldes vítimas de rumores e
injustiças.
Marx se tornou um explorador de mulheres, repugnante,
responsável pelo goulag. Há teorias revisionistas sobre Einstein que dizem não
ter sido ele o criador da teoria da relatividade, mas sua mulher. E teria sido
um pai abominável porque tinha um filho psicótico. Tudo isto não se sustenta.
Sobre Darwin também se inventou muita coisa. E sobre Simone de Beauvoir ou
Sartre, que foi coberto de injúrias. Foucault foi acusado de ser responsável
pela transmissão da Aids, e Jacques Derrida, de nazista. Para mim tudo isto
deve ser banido. São visões apocalípticas. Sobre Freud, se discutiu quem teria
lhe dado a última injeção. Se pretendeu que se teria ocultado o seu uso de
cocaína, o que não é verdade. Se acusou Freud de introduzir a cocaína no mundo
moderno. E o Freud fascista, amigo de Mussolini? Isso nunca. Sim, ele fez uma
dedicatória a Mussolini, mas é preciso contextualizar. Há frases que Freud não
pronunciou e que lhe são atribuídas. Há textos interpretados de forma
equivocada, sem o contexto. Há de tudo. Estranhamente, os antifreudianos
radicais não criticaram o que é criticável em Freud.
Por exemplo?
Não notaram muito as errâncias de Freud. Passam seu tempo
a valorizar teses aberrantes para melhor criticar Freud. Os antifreudianos
radicais pensam que Williem Fliess tinha razão contra Freud. Não sou por Wilhem
Reich (1897-1957) contra Freud, por Otto Gross (1877-1920) contra Freud. Não é
isto que se deve fazer, mas mostrar como o próprio Freud adota teorias
extravagantes. É normal que Fliess seja hoje esquecido, ele tinha um sistema de
pensamento irracional, mas fascinante. Pode-se ter muita simpatia por Reich,
como eu tenho,, mas a teoria do orgônio é delirante. Os antifreudianos radicais
passam todo o tempo a procurar antiheróis, não usam as verdadeiras críticas que
poderiam ser feitas a Freud.
A senhora vê hoje
uma crise do pensamento filosófico e da psicanálise hoje na França?
Estamos numa crise de herança na França, passageira, mas
numa crise europeia, mundial do pensamento. Há hoje na França uma renovação
evidente da filosofia, há uma geração de 40 anos que vai ser conhecida. Há uma
renovação da antropologia, da sociologia. Menos para a psicanálise, porque eles
estão acantonados na clínica. Daí a importância de um retorno de um Freud
histórico. Penso que saímos de um período difícil do ódio a Freud, e hoje é
preciso lê-lo de outra forma, como uma necessidade para os psicanalistas. Há
trinta anos, os não psicanalistas leem melhor Freud do que os psicanalistas. O
que não quer dizer que sejam maus clínicos. Eles não situam Freud na cultura do
tempo de Freud, e assim não sabem situá-lo em nosso tempo. “Em seu tempo e no
nosso” quer dizer: Freud que se constrói em seu tempo e que nos ilumina no
nosso.
(Fonte: O Globo)